Uma carta a uma Amiga

Minha amiga,
Nestes últimos dias tenho acompanhado a tua angústia, e tenho sentido o meu peito apertado por não ter palavras boas para te dar, mas te incluí nas minhas orações e a tua família também.
Gostaria muito de ter palavras boas pra te falar, mas não tenho, e sei que o teu coração está pequenino e sobressaltado dentro do peito.
Filhos!...
Somos tão vulneráveis com eles...
Lembro que quando o autismo deu a grande rasteira na vida da minha filha, eu fiquei paralisada, travei mesmo. A única coisa que eu sabia fazer era chorar, e chorei muito, por tempo demais.
Nesta época, a minha mãe,  coitada, queria tanto me consolar, eu era a filha que sangrava viva, e ela assistia de palanque. E eu não via que ela sofria, até porque eu estava sofrendo muito, para ver qualquer coisa além do meu sofrimento.
E assim eu sofria pela minha filha e ela sofria pela filha dela. Já nem falo da neta...
Numa madrugada eu acordei com o rosto lavado de lágrimas, pois até dormindo eu chorava e ela me encontrou chorando na sacada, e me disse baixinho:
- Minha filha, tem tanta coisa pior!...
Não suportei mais afinal eu estava cansada de ser consolada, todo dia, por algo inconsolável e eu disse pra ela:
- Mãe, a Nathália é o meu pior! Deixa-me chorar!...
- Não diminui o meu sofrimento saber que alguém sofre mais ou menos do que eu. Este sofrimento,  é meu! E eu sinto ele enorme, maior que eu, maior que tudo, e eu não estou  aguentando  mais.
Abraçamos-nos e choramos juntas.
Tem momentos na vida em que as palavras sobram, pois esvaziam de significado.
E é assim, querida, que eu me vejo diante de você: quase muda!...
Mas agora, passados todos estes anos, vejo que o tempo nos faz passar por verdadeiras alquimias cerebrais,  sem que percebamos.
Sabe, eu quase nem noto o autismo da Nathália, é claro que ela fez melhoras enormes, mas penso que o caminho que trilhei, é um caminho sem volta.
É assim que eu a vejo: Ela ali, pequenina e linda... Indo pra longe de mim. E eu olhando ela se afastar, lembro que era tão dolorida aquela despedida constante, eu ali vendo ela, ir-se...
Sabe quando estamos diante do salto e o coração salta primeiro que o corpo?
Foi assim, que eu fui atrás dela.
Ficamos autistas!...
Eu não sou autista pela genética, sou autista por amor, por amor à Nathália!
Eu transito, eu flutuo... E é assim que eu estou próximo dela sempre, e vivemos bem na nossa "disque" felicidade.
E hoje assim como eu visito o autismo, por amor, ela generosamente visita a normalidade.
Tanto que quando eu já não suporto, ela chega perto de mim e diz: Desculpe-me Sérgia, eu preciso entender estas coisas, né!
Do mesmo modo quando eu não entendo alguma coisa que ela quer que eu entenda, ela me diz: Você precisa saber dos deuses (por ex.) eu preciso da sua ajuda e você tem que me ajudar.
É verdade que ela está ótima, mas eu não sei o que é conversar com a minha filha sobre namoradinhos, festas, moda, vestibular, o que quer ser no futuro...
São assuntos dos quais eu fui apartada.
E geralmente eu não sofro por nada disso, graças àquela alquimia cerebral da qual falei e que nos adapta, com o passar do tempo, à vida que escolhemos.
Neste fim de semana passado eu saí com a minha prima e mais duas amigas, nós vivíamos juntas na época de mocinhas e elas tem filhas mais velhas que a minha e a conversa acabou chegando nas filhas e elas falaram do modo de ser e vestir das filhas, reclamaram, elogiaram... E eu não tinha muito que dizer pra elas, meu coração ficou pequenino. Mas como não falar do “amor da minha vida” tendo tanto para ser dito. Respirei fundo e disse pra elas que a Nathália adorava moda gótica e oriental, principalmente a moda jovem japonesa mais ligada a representação dos animes, os cosplay. E o legal é que elas ouviram, fizeram perguntas e me deram sugestões de costureiras e ideias... E eu vi que para elas é normal eu ter uma filha autista e terminei a noite feliz...
Tudo é normal na vida. Por mais duro que isso seja, e no fim acaba nem sendo tão duro quanto pensamos. A nossa capacidade de adaptação é enorme. A grande urgência, que eu vejo, é compartimentar dores e desilusões.
É terrível ter que aceitar o pior nas nossas vidas, assim como é devastador computar perdas. Mas por mais doloroso que seja por vezes é inevitável, e por muito que queiramos parar, puxar o freio de mão ou saltar do ônibus, infelizmente não conseguimos.
Ninguém chega à aceitação por querer aceitar simplesmente.
Chegamos à aceitação, exaustos de remar contra a maré. Extremamente cansados de desfiar sonhos, esperanças e de colecionar desilusões. Na verdade aceitamos, porque não tem outro jeito!
Rendemos-nos ao óbvio...
Levantamos a bandeira branca, dos vencidos, porque ansiamos por PAZ!...
Ah! Como diz um amigo “Não compliquemos mais, o que já é tão complicado".
Pense e procure olhar o seu filho, ele está com você.
Sente ao lado dele, feche os olhos, e sinta a maciez da sua pele. Respire fundo e sinta o perfume que ele exala e procure guardar na memória, este cheiro, que é só dele e pode ser seu também, é só querer.
Sente diante dele e com delicadeza procure com os seus, os olhos dele, e mergulhe fundo. Você vai enxergar um universo, nunca visto e este universo é todo seu querida, decifre-o.
Há tantas possibilidades. Se Entregue. Estes olhos podem te guiar na tua busca e imagine você o quanto de maravilhas ali reside. E cabe só a você, querer ir lá. Descobrir, se encantar.
Fale muito com ele, mesmo que pareça que ele não está entendendo, mas não se esqueça de dividir silêncios. Falamos tanto quando não dizemos nada.
Pare e observe, com agudo interesse, o ritmo da sua respiração e a cadência das batidas do seu coração, observe, tente respirar junto com ele, e tente mais, tente muito, fazer o teu coração bater na cadência do dele.
Quando ele adormecer deite do lado e ouça a sinfonia de sons, que dele exala, só pra você. Procure Ouvir. Ouça com o coração. Há música, nos nossos filhos.
E celebre, porque neles há VIDA.
Minha linda, sempre há o que ensinar o que dividir, por muito pouco, que pareça que se tem. Quem tem vida, e tem amor já tem demais, pra dar e dividir.
Amiga, eu estou aqui! E tenho rezado muito pra que a tua caminhada seja menos dolorosa e para que a Paz fique contigo por mais tempo.
Sérgia Cal.

2 comentários:

  1. Quer me fazer chorar é? Quase não consigo acabar de ler esta bela carta... me lembro como se fosse hoje quando saímos com a Nathália para ver roupas japonsesas... eu e Luiza sempre tivemos muitas, muitas caracteristicas de autismo e por isso achamos que nos damos tão bem com todos eles. Mas a Nathália é especial porque ela curte o que eu e Luiza curtimos... e como acredito em outras vidas, acho que nós três já fomos orientais, hehehe.

    Tem foto minha e da Luiza de Yukata (tipo kimono) no orkut, e um festival japonês em Ribeirão Preto (Tanabata), mostra pra ela!

    Quando vamos pra liberdade de novo? heeeeeeim?

    Beijos em você, pessoa ímpar que TANTO gostamos. Vamos linkar seu blog!

    Karla Coelho
    www.estouautista.com.br

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  2. uauuuuuuuu amei e claro chorei, senti alegria e o sentimento mais forte foi de saudade... conviver com pessoas tão especiais quanto Nathalia é um presente... apenas precisamos de um tempo pra entender isso.. com o Lu foi assim... hoje não sei viver sem ele... ele é tudo pra nós... nosso mestre, nosso motivo de acordar cedo, nossa luz...
    Desafios em para nos fazer crescer... que bom que temos mestres por perto!
    Sérgia, que saudades daquele passeio na liberdade...
    beijos

    www.estouautista.com.br

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