O Anjo Escangalhado...

                          O Anjo Escangalhado

26/5/2008
04h36min

Estou a alguns dias, remexendo na memória e na saudade: De um anjo de asas quebradas.
Anos atrás, quando em franca depressão, descobri que minha memória tinha saído por uma porta que eu não sabia onde ficava e junto, quase toda, a minha identidade havia sumido...
Não sabia onde me buscar, nem como!...
E foram anos difíceis, em que a amargura e o desespero me visitavam com assiduidade.
Era tudo tão intenso e verdadeiro que eu não continha dentro do peito tanta dor, no entanto não podia deixar claro o meu o meu desespero pra minha família, principalmente pros meus filhos...
No entanto eu precisava chorar e chorar muito afinal, eram tantas as emoções vividas e os problemas que se avolumavam, eram enormes...
Descobri que dentre as coisas que ainda sabia fazer, era dirigir a que me causava uma leve sensação de solidão e real noção da minha individualidade.
No meu carro, eu podia ser eu mesma e podia sim, me sentir em comunhão com a minha dor...
Foram tantas as ruas nas quais chorei, e enquanto a paisagem passava veloz, revivia dores e desfiava lamentos...
E por vezes a fuga, insana de mim, era interrompida por um sinal vermelho, que estancava a fuga, mas não a dor...
Lembro que, numa dessas fugas, estava eu parada em um sinal vermelho e totalmente entregue ao meu sofrimento, me debrucei no guidon do carro e chorei! Chorei convulsivamente, todas as minhas lágrimas inundaram os meus olhos...
E quando eu estava ali de olhos baixos, presos na dor, ombro encurvado e cansado pelo peso da desesperança, ouvi uma voz bondosa a me dizer:
Senhora, não chore! Olhe, vai ver que os seus problemas nem são assim tão grandes...
Levantei os olhos e me deparei com um homem, de olhos claros, e serenos, sentado numa cadeira de rodas, me sorrindo mansamente com lábios repuxados... Olhei melhor aquele homem quase sem forma e senti tanta vergonha de mim e da minha dor, diante de Deus...
Eu devolvi o sorriso pra ele, e enxugando as lágrimas com as mãos, por debaixo dos óculos... E falei da dor que o autismo da minha filha estava me causando... Ele sorriu largo e me disse:
Que bom que a senhora está chorando por sua filha, que está viva... Tá vendo, podia ser pior...
Sorri de modo escancarado, o que foi interrompido pelas buzinas. Acelerei e gritei em voz alta...Tchau, Meu Amigo!...
E assim ficamos amigos, ele pedia esmola pros motoristas de todos os carros que ali passavam e como era meu caminho pra casa, sempre nos falávamos...
E toda vez que o sinal me interrompia, lá vinha o meu amigo me dar boas palavras, e sempre me perguntava da minha filha, e sempre me dizia:
Ela vai ficar bem!...
Quando eu ali parava, ele não esmolava... Ele me dava imediata atenção e carinho, e eu passei a ser tratada de “Minha Amiga”... Por vezes passava por vários carros pra vir falar comigo, girando com dificuldade as rodas de sua cadeira.
Se o sinal estava verde e eu passava... Buzinava pro meu amigo e o meu amigo me acenava...
E foram anos de conversas breves, de sorrisos e camaradagens recíprocas...
Muito pouco pude contribuir pra diminuir a sua necessidade, nem ele deixava, sabia que eu também sofria por estar desempregada... Sorria largamente e me dizia:
A senhora é minha amiga, já me dá a sua amizade...  
Eu já sabia, e o buscava com os olhos, no canto da Soledade (Cemitério da Soledade, hoje desativado) lá ficava todo dia, o meu anjo escangalhado...
Um belo dia, o meu anjo sumiu! Fiquei aflita, meu amigo não estava mais onde sempre esteve. Embora o procurasse não o achava, e os dias foram passando até que o revi novamente, e perguntei por onde ele tinha andado, que eu havia sentido sua falta... Ele sorriu como antes e me disse que tinha ido à Macapá, a sua família era de lá, e que demorou porque havia adoecido e que em breve pra lá retornaria, retomamos a nossa camaradagem...
Eu já não chorava e ele já não me consolava... Mas sempre nos fartávamos de sorrisos. Meu amigo, nunca soube meu nome! Nem eu sabia o dele...
Afinal, amigo não precisa de nome!...
Os meus filhos sabiam que ele era meu amigo, pois quando passávamos juntos por ali é claro que nos falávamos, do mesmo jeito... O Rodrigo já dizia: Olha, está lá o teu amigo... A Nathália apenas olhava e sorria... (Acho que entre anjos não precisa de palavras...).
Novamente meu amigo sumiu, mas dessa vez não me alarmei, os dias se passaram e o meu amigo nada de voltar, procurei com os meus olhos e não o achei por tantos meses que me acostumei a não tê-lo, passei a buscá-lo sempre com o olhar...
No início da semana passada, estava com a Nathália no carro, parei no sinal, e olhei pro lado e vi dois vendedores de frutas, baixei o vidro do carro e perguntei me dirigindo a um deles:
Moço, o Senhor se lembra de um rapaz que ficava aqui na esquina numa cadeira de rodas pedindo esmola?
Ele me olhou surpreso, e disse de sopetão: Ele Morreu! Olhou pro outro e disse: Era o Abel... E disse pra mim: Ele morreu faz tempo, senhora. Em Macapá, sabe ele tinha coração grande...
Sim, eu sabia que ele tinha o coração grande! Tão grande que me acolheu...
As lágrimas me saltaram dos olhos... Eu agradeci. O sinal abriu... E a Nathália me disse:
Você está chorando por causa do seu amigo, eu sei, acredite Sérgia, ele está com Deus... Mas as lágrimas teimavam em cair...
Ela então tocou no meu rosto e disse: Eu sinto muito Sérgia!...
Contei emocionada ainda, pro Rodrigo e ficamos tristes pela perda do Meu Amigo.
Há um ano atrás, exatamente neste horário, Deus estava com o meu filho no colo, e o livrou da morte...
Onde estaria o Meu Amigo, meu anjo escangalhado, naquele instante?   
Acho que do meu lado, me dizendo: Ele vai ficar bem...
Chorei, pelo Meu Amigo, no tempo que Deus quis...
Sou grata por ter podido conversar, sorrir, brincar e me consolar...
Com mais um anjo de Deus...
                                                      
 Sérgia Cal.    

4 comentários:

  1. Sérgia, que história linda... me emocionei muito em saber que você teve essa oportunidade de convivência tão linda e que se não fosse por uma pessoa como você, despida de preconceitos e barreiras, esse anjo passaria despercebido. Anjos estão por toda parte nos auxiliando, sejam eles visíveis ou invisíveis e devemos orar para nos sintonizarmos com eles... Você é um anjo na vida de muitas pessoas sabia? Estou amando refletir com você... beijos com saudades!

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  2. Chorei... que texto fantástico... faz a gente refletir sobre MUITAS coisas. Me emocionei muito com a sensibilidade da Nathália pois ela estava diante de uma situação difícil (ver a mãe chorar) e teve a capacidade de te confortar, acalmar, e ainda citou Deus. A separação carnal é muito dolorosa mas com certeza seu anjo Abel está sempre com você, te auxiliando, do mundo espiritual. E você pode estar sempre com ele, o presenteando com orações e pensamentos positivos!

    Beijos!

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  3. Sérgia, participa com foto no concurso que tá no blog do Lu!!! Conto com vc!!! Beijokas!

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  4. Nossa emocionante,muito lindo,chorei...Um abraço!

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